Bailarina usa a própria casa como palco para cortesã

A dançarina e coreógrafa Patrícia Noronha abre as portas de sua casa para receber o público no espetáculo "Lucíola - Exercício 1", inspirado na protagonista do livro de José de Alencar. A estréia acontece neste sábado (26), às 21h. Além da própria Patrícia, a montagem conta no elenco com os atores-dançarinos Gabriela Itocazo e Marco Xavier.

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Coreógrafa e bailarina Patrícia Noronha encena espetáculo em sua própria casa, em São Paulo

A idéia de utilizar a própria casa como cenário --mais especificamente a sala de estar e uma varanda-- partiu da própria bailarina e do cenógrafo Hideki Matsuka. "Comecei a ensaiar numa sala muito grande, que não tinha a ver com o ambiente de Lucíola, a alcova. Achei que o público teria de ir a casa que tivesse vida", disse a coreógrafa ao Guia da Folha Online. Os (altos) preços dos aluguéis nos teatros paulistanos também ajudaram na decisão.

Após dois anos de pesquisa sobre a obra do escritor brasileiro, Noronha amadureceu a idéia. Escrito em 1854, o texto aborda a vida e os costumes na corte de um Brasil escravocrata do século 19, sob uma visão crítica das contradições e hipocrisias socioculturais do período romântico no Brasil.

A protagonista do romance "Lucíola" é uma cortesã da alta sociedade, que oscila entre os papéis da prostituta Lúcia e da inocente jovem Maria da Glória. Em seis coreografias, a montagem "Lucíola - Exercício 1" reconstitui uma cena que objetiva condensar todo o enredo.

Intimista, não íntimo

O uso de um espaço reduzido, como uma sala de estar, pode ser um diferencial para os espectadores e amantes da dança. No entanto, ciente do jogo de sedução que a personagem prostituta propõe --Lucíola sugere posições pornográficas, eróticas e obscenas, embora não explícitas--, Noronha se preocupa em não ultrapassar o "espaço" da platéia.

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Noronha encena espetáculo baseado em livro homônimo

Assim como a cortesã Lúcia, que recebe homens em sua própria casa, não em um prostíbulo, a bailarina tenta mostrar a personagem como uma mulher discreta, até mesmo quando os movimentos são bastante sensuais. "Descartei a nudez, pois considero algo muito agressivo para alguém que está tão perto".

Os 16 espectadores de cada sessão interagem com os bailarinos de forma delicada, segundo Noronha. Em uma das cenas, Lúcia dança sobre a mesa à medida em que incita a platéia a retirar suas peças de roupas. No texto original do romance, a personagem Lúcia dança totalmente nua em cima da mesa durante uma orgia.

"A cena é um dos pontos altos do livro, mas pensei em não fazê-la para não constranger os que estariam ali presentes; o contato é muito próximo", disse. Ao perceber o incômodo da bailarina, o cenógrafo Matsuka deu a idéia da dança sobre a mesa, e de mantê-la parcialmente vestida durante o ato.

O clima interativo é reforçado pelas taças de vinho servidas à platéia ao longo do espetáculo. "Até me preocupei com a Lei Seca, como as pessoas voltariam para casa, mas depois vi que isso vem de cada um, né?", disse rindo.

Construção

A preparação do palco-casa começou há mais de um ano, quando Hideki mudou as cores das paredes, criou quatro espaços cênicos, pendurou cortinas e fez uma varanda improvisada. A cada lampião pendurado, mais referências físicas de Lucíola apareciam. "É cansativo, pois trabalho o tempo todo, entro na sala e começo a pensar, mas estou muito feliz", diz.

A bailarina doou o sofá e armários que decoravam a antiga sala, colocou um piano na sala e manteve um espaço para projeção de imagens de vídeo. Um armário vazio faz parte da cena e reserva uma das surpresas da trama.

A ausência de falas é preenchida por sussuros e respirações que saem das caixas de som como uma trilha de ruído sonoros. A sonoplastia é assinada pela filha de Patrícia, Mariah Portugal.

Referências

A atemporalidade da personagem de Alencar foi um dos fatores da escolha da bailarina. "A prostituição é um problema que sempre existiu, é fruto da sociedade que a cria, rejeita, mas não elimina", filosofa.

Os personagens interpretados por Patrícia são de diferentes idades, um desafio para a bailarina de quase 50 anos. "Não fiz a Lúcia do romance, mas o que ela representa, o arquétipo, pois ela tinha 20 e poucos anos no texto original." A bailarina Gabriela Itocazo, de 23 anos, traz referências mais juvenis, apesar da maquiagem reforçada de pancake e do figurino de espartilho e saia rodada.

Pancake, sombras negras e batom vermelho são uma das referências ao coreógrafo japonês Kazuo Ohno, que Noronha conheceu pessoalmente no Japão e faz questão de homenagear. "Ele me mostrou caminhos para o desenvolvimento que eu não sabia. Mesmo sem poder levantar à época, ele me pegou pela mão e começou a fazer movimentos que mudaram minha maneira de dançar", relembra.

Assim como a dualidade de Lucíola, a pesquisadora, dançarina e coreógrafa impõe ao erotismo do tema um delicado distanciamento da pornografia.

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