"Estou me sentindo cerebral. Fico cerebral quando a cerveja encontra o ponto químico do meu estado, e então, entro em energia fractal". Registrados em caderninhos de anotação guardados em caixas de vidro na parede, devaneios boêmios, rascunhos de música e mapas de palco nos permitem chegar um pouco mais perto da intimidade do pernambucano Francisco de Assis França na "Ocupação Chico Science", aberta ao público desde quinta-feira (4) no Itaú Cultural (região central da cidade de São Paulo).
Veja fotos de Chico Science expostas na ocupação
Para chegar até o "coração" do cara que protagonizou o movimento mangue e revolucionou, sem querer querendo, a música brasileira, vá direto ao centro do espaço e atravesse um emaranhado espesso de fitas coloridas --que remete àquela perucona do maracatu, frequentemente vista nos shows de Science com a nação Zumbi. Do outro lado, um ambiente pequeno e claro guarda fotografias, os chapéus, roupas e óculos que eram marca registrada do músico, fitas cassete, uma disqueteira, troféus-esculturas e até mesmo uma estatueta de marinheiro, o seu "santo" protetor.
"Esse santuário é o lugar da exposição que eu mais gosto. A gente se encontra com ele, no existencial, no pensamento, sente a forma como ele trabalhava", conta Goretti França, 47, que emprestou o acervo que fez com os pertences do irmão caçula à mostra. "Ali você silencia e ouve a voz dos outros falando sobre ele. E mesmo assim não é triste, é um encontro respeitoso". Goretti, que morou muito tempo com Science, hoje vive em Salvador (BA) e trouxe a mãe, dona Rita, e a sobrinha para a abertura da ocupação. "Vez em quando eu volto para Recife para visitar meus pais e dar uma ajeitada nas coisinhas de Chico", conta.
Pelas veias do mangue
Dali do coração do caranguejo cerebral, saem veias pulsantes que levam às diversas vertentes do auê cultural do mangue --que não só adubou a música, mas também as artes plásticas, a literatura, os quadrinhos--, espalhado pelas outras partes do corpo da mostra. A ocupação tem o início e o fim delimitados pela réplica do Landau que Science pilotava para lá e para cá na sua "manguetown". Infelizmente, o possante faz lembrar do acidente fatal que tirou a jovem vida do ativista apenas três anos depois do lançamento do álbum de estreia, "Da Lama ao Caos", marco do movimento.
Desse disco, do sucessor "Afrociberdelia" (1996) e de outros trabalhos do gênero, sai a música que não para. É inevitável sacodir alguma parte do corpo aos riffs de guitarra e batuques regidos pelo vocal característico de Science, enquanto os olhos percorrem a parede de cartazes e flyers colecionados por Paulo André, produtor da banda, que mostram como o grupo estourou rápido no Brasil e no exterior, em festivais como o Hollywood Rock e o Dour Festival, respectivamente, ambos em 1996. "Fazia uns dez anos que eu não mexia nesse material. Foi muito doloroso perder um artista completo e um amigo daquela maneira", desabafa.
Gire o corpo em 180 graus e acompanhe a linha do tempo do Chico Science e Nação Zumbi escrita à mão e diversas credenciais dos shows da banda. A trajetória também é contada na parede que segura fotografias de shows, ensaios, noitadas, todas enquadradas naquelas molduras laranjas de espelho de barberia, e pelos registros em vídeo, projetados no telão alojado no porta-mala do carro. É ali na traseira que reproduziram o bar Soparia, ponto de encontro de artistas recifenses na década de 90, caracterizado por pufes vermelhos --a casa tinha um disputado sofá rubro-- e uma estátua de cachorro, "mascote" do local.
"Muitos jovens que não tiveram a oportunidade de ver Chico no palco poderão assistir a vídeos com shows, documentários, ver de perto cartazes e fotos que mostram o modo como Chico interagia com outros artistas e levava essa cultura adiante", destaca Paulo André. "Infelizmente o Brasil é um país sem memória. Para você ter ideia, Recife não tem nada documentado sobre Chico, nenhum acervo relevante sobre a memória desse artista que fez a cidade ser vista com outros olhos".
Confira aqui a programação de shows, cinema e palestras da "Ocupação Chico Science".
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